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Conto XXIII - "A Viagem de Pêro da Covilhã"

por Eduardo Gomes, em 06.02.20

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No seu gabinete do palácio de Sintra, D. João II ouviu, no corredor de acesso, o calcorrear de botas que traziam pressa. Talvez por isso, não se surpreendeu por sentir que os guardas logo davam passagem ao visitante:

– Pêro, sê bem-vindo.

Pêro da Covilhã era assim conhecido por ter nascido na cidade serrana. Aos 18 anos fora convidado para ir a Sevilha colocar-se ao serviço do duque de Medina Sidonia. Espadachim credenciado por loucuras próprias de tão tenra idade, foi-lhe proposto acompanhar D. Juan de Gusmán nas actividades corsárias a que o duque se dedicava. Recusou. Ainda assim viveria na Andaluzia por sete anos, até 1474, data do início da guerra civil pela sucessão de Henrique IV. Naquele ano voltaria a Lisboa e seria recebido como moço de esporas de D. Afonso V, embora rapidamente ascendesse a escudeiro, que o levaria a acompanhar o exército real na batalha de Toro e na malograda expedição a França.

A política castelhana daquela época era um exemplo paradigmático do enfraquecimento do poder real em favor de uma nobreza cada vez mais soberba e impune. Ademais, a Reconquista cristã, sobretudo no sul da península, parecia incapaz de anular a cultura e tradição islâmicas, que se instalavam na forma de vida quotidiana castelhana. Nada que não se observasse também a leste, com Aragão, ou oeste, em Portugal. Os arabismos traduzidos para as respectivas línguas, vertiam a islamização ibérica. Expressões corteses como ésta es su casa (Al-bayt baytak) ou o Venga usted a comer!, ou os béricos si quiere Dios/se Deus quiser, e ojalá/oxalá (wa sa’a-l-lah). Mas não só. Os conquistadores começaram a recorrer aos banhos públicos, as mulheres a usar lenços na cabeça, e até os homens cavalgavam à gineta. Bem podia arvorar a bandeira de Castela e Leão na torre mais alta do Alcazar: Sevilha era islâmica. Tão islâmica que até os judeus ali se haviam acolhido em busca da tolerância que em terras da cristandade mais ortodoxa não podiam aspirar.

Voltemos agora à conversa entre D. João e Pêro da Covilhã:

– Mas só agora reparo: que má cara trazes.

– Na verdade não tenho motivo para tal, alteza. É cá um sentir, coisas de meu caco. É que, não obstante as mortes dos duques Fernando e Diogo, não acredito que a vida de Vª Alteza esteja segura.

– Nem tu nem eu. Todavia, creio que a questão se ponha mais ao nível externo que interno. Os traidores vão tentar cair nas boas graças dos monarcas estrangeiros, sobretudo de Isabel. Uma guerra com Castela era coisa que não vinha nada a calhar. Preciso de paz para levar este reino ao progresso e ao desenvolvimento.

– Podeis contar comigo, senhor.

– Preciso dos teus serviços de espião. Manteres-me informado, saber quem são e o que fazem os traidores que se deitaram a Castela. Falas como um natural. Homiziado, ninguém te reconhecerá.

– Assim farei. Porém, tenho uma dúvida. Quando os encontrar, que lhes faço?

– Promove que tenham alguma espécie de “acidente”.

E foi assim que desapareceu da face da Terra o nobre Fernão da Silveira, que se refugiara em França. O espião d'el-rei permaneceu em Castela, durante os anos de 1483 e 1484, aproveitando para observar os costumes e refrescar os conhecimentos da língua árabe. Também o conde de Penamacor estava debaixo do olho observador de Pêro. Todavia, o titular conseguiu escapar para Inglaterra.

Ao voltar a Portugal, o espião quis saber o que se passara com Lopo de Albuquerque:

– Andou a destilar vingança contra o reino e a minha pessoa – contou o rei. – Pedi a extradição, mas o Ricardo III não fez mais do que  prendê-lo na Torre de Londres.

– Os Iorque vão perder a Guerra das Rosas. Preste teremos os Tudor no trono de Inglaterra – prognosticou Pêro. – E, já agora, porque me enviastes ordem para não acabar com D. Álvaro, que bem à mão o tive? Não pensais condená-lo?

- O filho Pedro foi julgado e degolado há bem pouco, em Setúbal, ia Setembro pelo meio. O pai fugiu para Castela com o fogo no rabo. É um informador e protegido dos Reis Católicos. Não te quero meter em riscos desnecessários nem arranjar problemas diplomáticos. Fiquei-lhe com os senhorios de Castanheira, Cheleiros e Povos. Está velho; a natureza cumprirá o que agora não faço eu.

Cansado da viagem e ansioso por voltar ao seio da família, Pêro partiu para a sua terra, consciente de que o rei lhe preparava nova tarefa.

– Dá-me cabo do coração as tuas ausências, o saber-te em perigo – assim o recebeu Catarina, a esposa.

– Coisas de mulher. Sou escudeiro d'el-rei, bem o sabes. D. João mandou-me estar preparado para novo encargo. Decerto pouco me demorarei por cá.

– E já sabes se vais de novo para Castela?

– Não, na verdade, nada mais soube, ainda que se falasse duma ida de frei António de Lisboa e frei Pedro Monterroio em busca do preste João.

– Do preste das Índias? Que doideira. Um homem que nunca ninguém viu. Ainda bem que não se lembrou de te mandar lá pra tão longe...ou estás-me a esconder algo e vais com eles?

– Descansa, mulher. Como te disse, nada me soou. Não te ponhas a imaginar coisas. A seu tempo se verá.

No princípio de 1485, Pêro recebeu mensageiro que logo adivinhou a origem. Sua Majestade aguardava-o.

– Preciso que vás ao Magrebe, aos reinos de Tlemcen e da Enxovia.

O reino da Enxovia ficava a norte de Azamor, e era o nome que os portugueses davam ao território dos berberes Chauia. E, por tal, logo o escudeiro contestou:

– Melhor será que o faça por duas vezes, posta a localização de ambos os reinos.

– Fala com os meus secretários e combina com eles os detalhes das viagens.

– Fá-lo-ei, senhor, mas ainda não me dissestes o que lá vou fazer.

D. João mediu o quão confidencial era o que tinha a dizer:

– Basicamente firmar tratados de paz. Mas o mais importante é que ninguém entenda o que escondo por detrás de tal proposta.

– Ainda não sei qual o plano e já lhe vejo constrangimentos, a começar pela visita a Muley Beljabe e não ao seu senhor, o poderoso governador de Fez, Muhammad al-Shaikh (conhecido entre os portugueses pelo Muleixeque).

– Não posso ter segredos para com alguém que vai arriscar a vida por mim. Senta-te e logo te explicarei.

Pêro não conseguiu esconder um sorriso:

– Estratégia é a maior qualidade de Vossa Alteza.

– De um rei espera-se racionalismo, não leviandade.

 

(Continua)

 

Os pais / encarregados de educação das crianças envolvidas neste projecto, poderão solicitar a versão integral do mesmo através do e-mail: asvoltasdahistoria@gmail.com.

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publicado às 20:28

Sessão de 11 de Janeiro de 2020 - Conto XXII

por Eduardo Gomes, em 06.02.20

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Começámos o ano da melhor maneira, ou seja, revendo a vida do nosso maior rei: D. João II. A ele dedicaremos os três próximos contos. Não é demais, acreditem! 

Nesta primeira sessão, vimos como teve de resolver o problema dos muitos inimigos internos, nobreza ciosa dos seus privilégios. O próximo conto levar-nos-á a entender a estratégia real para atingir a Índia, e o apoio esperado (ou talvez não) do mítico Preste João. Finalizaremos com a epopeia das descobertas, de que um certo Venturoso colheu lucros e louros.

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DESAFIO VOCABULAR

Face às pontuações obtidas no último conto, os mais bem classificados são:

João Fernandes..........................195 Pontos

Lourenço Pinto...........................165

Maria Lorena.............................160

João Machado............................145

Hugo Âmbar................................90

 

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Recordo o universo de palavras e expressões a concurso no próximo conto, dia 8 de Fevereiro:

Vergônteas..............................Rebentos

Alcova...................................Quarto de dormir

Tíbio.....................................Frouxo;

Ergástulo................................Prisão;

Virar a agulha..........................Mudar de ideias;

Pobreza franciscana...................Mediocridade;

Angras....................................Enseadas;

Escudela.................................Tigela;

Antístite.................................Bispo;

Estéril....................................Infecundo;

Dar à luz.................................Parir

Lenha para se queimar................Prejuízo próprio

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publicado às 10:26

Conto XXII - "O Príncipe Perfeito"

por Eduardo Gomes, em 10.01.20

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O PRÍNCIPE PERFEITO

PARTE I – OS INIMIGOS INTERNOS

Quando Afonso V morreu, a 28 de Agosto de 1481, os nobres portugueses ficaram sobressaltados. É que não sabiam o que lhes reservava o futuro. Sempre disposta a criar obstáculos ao pleno exercício da governação, a nobreza pretendia um rei que não lhe ofuscasse o poder e a autoridade; que se dispusesse a conceder-lhe graças e mercês.

Acontecera que Afonso V, qual mãos-largas, tudo dera aos nobres durante o seu largo reinado: cargos, terras, padroados, privilégios, tributos e tudo o mais que lhe parecera bem, na ânsia de ter a seu lado a fidalguia que o ajudava a fazer as guerras, primeiro com os mouros, e, depois, com Castela. Imagine-se que, antes de partir para a mais tarde chamada batalha de Toro, o rei, ciente da sua incapacidade de dizer não aos manhosos e de mais erudita lábia, assinara um documento secreto que entregou ao filho, onde declarava que todas as mercês que concedesse durante o conflito, não teriam valor se não fossem também firmadas pelo príncipe.

O novo monarca, D. João II, homem maduro e experimentado nas artes da governação, já dera provas de que não seguiria as pisadas do progenitor:

– Meu pai deixou-me rei das estradas de Portugal.

E para aqueles que não se cansavam de lembrar a memória do progenitor, logo retorquiu:

– A monarquia é maior que o próprio rei; não perece com o desaparecimento daquele.

A expressão possuía significado profundo, pois o reconhecimento do falecido pai, legitimava de antemão o reconhecimento dele próprio, João.

Convocar cortes para levar a cabo a cerimónia da coroação era um velho costume do reino. Quiçá dispensável, no caso, pois D. João já havia sido rei por quatro dias quando o pai abdicou da coroa, entre 11 e 15 de Novembro de 1477. Ainda assim, rei morto, rei posto era aforismo imperativo a requerer solenidade. No imediato, havia que defender o território, administrar a justiça, liderar o povo, conter ambições desmedidas.

O chanceler Vasco Fernandes de Lucena pronunciou a oração de abertura das cortes iniciadas em Novembro de 1481, em Évora, e, já em 1482, continuadas em Montemor-o-Novo por causa da peste:

– Quem verdadeiramente obedece a seu rei, faz coisa digna de sua honra e de seu glorioso nome, de suas virtudes e de sua consciência (…) Dai ao vosso rei vossas obediências, vossos preitos e menagens, jurai-o por verdadeiro rei e por senhor destes reinos e senhorios

Para acalmar espíritos mais cépticos, D. João formulou o juramento solene que todos queriam ouvir;

– Juramos e prometemos de, com a graça de Deus, vos reger, governar bem e directamente e vos ministrar inteiramente justiça, quanto a humana fraqueza permita e de vos guardar vossos privilégios graças e mercês, liberdades e franquezas que vos foram dadas e outorgadas por el-rei meu senhor e padre, cuja alma Deus haja e por outros reis passados seus predecessores.

Temia-se que a ascensão de João ao trono significasse forte investida sobre as jurisdições e poderes que os nobres detinham. Todavia, fidalgos e prelados ouviram o juramento com um brilho nos olhos. João não revogava, antes confirmava. Dir-se-ia querer atalhar caminho, deixar para trás um passado recente de confrontos velados com a alta nobreza.

A inovação daquelas cortes, realizadas em Évora, em Novembro de 1481, residia no modelo de juramento de obediência e menagem pelas fortalezas que detinham, a qual colocava o rei como escolhido por Deus, e os aristocratas como devendo à vontade do monarca seus estados. O novo protocolo obrigava alcaides e representantes concelhios a declamarem oralmente, joelho no chão e com as mãos colocadas entre as do rei – sentado no trono dois degraus acima – um texto de fidelidade e obediência, através do qual devolviam as fortalezas ao monarca, no pressuposto de as receberem de volta. Dependência e precariedade: indubitável arbítrio real. Antes de assinado posteriormente pelo próprio e confirmado pelo escrivão da puridade, era ainda obrigatório beijar as mãos do rei em sinal de obediência, sujeição e senhorio, como a nosso Rei e senhor que direita e verdadeiramente sois.

O mal-estar instalou-se. O novo texto foi considerado “áspero e prejudicial” às honras e privilégios da nobreza. Sabia João onde queria chegar. A Casa de Bragança, sobretudo esta, era dona de metade do país; possuía os ducados de Guimarães e da própria Bragança; o marquesado de Vila Viçosa e Montemor-o-Novo; os condados de Barcelos, Ourém, Arraiolos e Neiva. Eram senhores de Montalegre, Penafiel, Monforte e de alcaiadarias sem conta. Afonso V nomeara mesmo o duque Fernando fronteiro dos seus domínios.

A oposição ao protocolo imposto congregou os grandes senhores, liderados pelos mais eminentes membros das casas de Bragança e Viseu. Curiosamente, em maior ou menor grau, todos familiares do novo monarca. Vergônteas da política de segregação aristocrática iniciada pelo bisavô, João I.

Assim se expressou o duque de Bragança, visivelmente exaltado:

– Que falta de respeito tendes pelas tradições deste reino. Não vos chega a aclamação, como chegou a vosso pai ou avô? Nunca monarca algum exigiu tanta submissão lesiva da dignidade dos seus pares.

Mas logo o rei volveu:

– Não sois meus pares; não sou vosso igual. Sou o senhor dos senhores, não o servo dos servos. Habituai-vos ao rigor, pois não estou disposto a admitir traições ou falta de cumprimento da palavra dada. E isto aplica-se, sem excepção, a todos os naturais deste reino.

– Qual o fundamento jurídico para exigirdes tal vexame? Só constrangido me rebaixarei a tamanho ultraje.

E como o rei parecesse não fazer caso das suas palavras, logo Fernando continuou:

– Em defesa da minha honra e dos demais senhores que aqui estão, quero apresentar o meu protesto. Ainda hoje mandarei João Afonso, vedor da minha Fazenda, a Vila Viçosa, a buscar a documentação que à Casa de Bragança foi outorgada pelos vossos antecessores, a isentar-nos de tal humilhação.

Fernando viu-se obrigado a engolir a soberba, e, em seu e no nome do duque de Viseu, ausente em Castela, foi forçado a pronunciar o juramento conforme exigido pelo rei. Como não era possível o testemunho de todos, D. Álvaro de Bragança formalizou o acto em nome dos outros dois irmãos, o marquês de Montemor-o-Novo e o conde de Faro do Alentejo. Pelas cidades respondeu um dos procuradores de Lisboa, e pelas vilas, o de Santarém.

Os povos, porventura estimulados previamente pelos funcionários reais, não se eximiram de denunciar violentamente os abusos dos aristocratas::

– Irei mandar averiguar a consistência de tais abusos.

Mas logo volveu o duque:

– Está vossa alteza a querer aproveitar o pretexto para justificar as entradas de vossos corregedores em nossas terras.

– Saiba o senhor duque que o principal dever dum rei é manter a justiça, e como os povos ma pedem, por nenhuma razão posso ou devo negar-lha.

 

(Continua)

 

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publicado às 18:26

Sessão de 14 de Dezembro de 2019 - Conto XXI

por Eduardo Gomes, em 10.01.20

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É natal...é natal...

Dia de conhecermos a história da Excelente Senhora, Juana a Beltraneja, que, destronada do reino e do direito, afastada por conveniências políticas, a todos resistiu: ao rei de Portugal, que ameaçou casá-la em Navarra; ao rei de França, que a queria usar como arma de arremesso; ao rei de Castela, que lhe propôs matrimónio ultrajante.

Morreu em terra lusa. Infelizmente não a podemos visitar na sua última morada. O Terramoto de 1755 tudo levou. E era importante sabermos se era ou não filha de Henrique IV. É que pode ter sido o primeiro caso de inseminação artificial ocorrido a nível planetário. Voltas da História.

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DESAFIO VOCABULAR

Recordo o universo de palavras e expressões a concurso:

Tíbio.....................................frouxo;

Ergástulo............................... prisão;

Virar a agulha......................... mudar de ideias;

Pobreza franciscana...................mediocridade;

Angras...................................enseadas;

Escudela.................................tigela;

Antístite.................................bispo;

Estéril....................................infecundo;

Dar à luz.................................parir.

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Face às pontuações obtidas no último conto, os mais bem classificados são:

João Fernandes..........................170 Pontos

Lourenço Pinto...........................165

Maria Lorena.............................160

João Machado............................145

Hugo Âmbar................................90

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publicado às 18:20

Conto XXI - "A Beltraneja"

por Eduardo Gomes, em 12.12.19

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INTRODUÇÃO

O sonho da união ibérica percorreu a Idade Média peninsular. Tal aspiração parece haver-se tornado questão de prestígio para as respectivas monarquias. A dinâmica do desejo pode filiar-se na luta contra a mourama, mas não só. Representou, posteriormente e à medida que a Reconquista avançava, a consequência natural da unidade cultural, da trajectória histórica e da homogeneidade étnica dos povos que a constituíam.

Os movimentos de agregação são observáveis em Fernando Magno, Afonso VI e o auto-intitulado imperador Afonso VII. Só a partir do século XII se começou a admitir a ideia de forças diferentes, contudo unidas no mesmo objectivo. Relembre-se que, ainda assim, Afonso Henriques esteve 36 anos à espera da bula papal que fizesse de Portugal estado independente vassalo da Santa Sé. E até Afonso X quis transformar a “questão Algave” num caso de sujeição política.

Os monarcas de Portugal e de Castela, em particular, viveram alternadamente o projecto da união nos finais do medievo Pela guerra ou através dos casamentos que acabam a colocar várias coroas na mesma cabeça. O luso Fernando achou-se com direitos ao sólio castelhano-leonês; Juan I acreditou que casar com Beatriz,a herdeira portuguesa, lhe daria para si e para os seus o pote do ouro; Afonso V tentou levar Joana, a Beltraneja ao colo até Madrid. Peso a mais. A Católica Isabel e João II casaram os filhos, legítimos sucessores dos respectivos reinos. Debalde. E, contudo, Isabel insistiu, já não com o príncipe, mas com o próprio rei Manuel. Miguel da Paz se chamou o rebento que iria ter nas mãos o poder peninsular. Morreu com dois anos. Estava escrito que só à força bruta se atingiria o desiderato. Em Alcântara, Filipe II colocou nas mãos do duque de Alba o futuro que adivinhava risonho. Passou a Filipe I de Portugal quando a Idade Moderna era já centenária. Pelo caminho haviam caído os reinos de Leão, Aragão e Navarra. Safa, estava difícil.

 

O CONTO

Treze anos se haviam passado desde que Henrique de Castela, Príncipe das Astúrias e de Jaén. casara, em 1440, com Branca de Navarra. Naquele dia, furioso, ordenava ao mordomo-mor:

– Escreve ao Papa a pedir-lhe que anule o casamento, pois minha esposa não me dá um herdeiro.

De uma câmara interior, ouviu-se voz feminina gritar:

– Nem eu, nem ninguém to pode dar. O problema não é meu; é teu.

 

O casal tinha fama de serem ambos estéreis. Talvez sim, talvez não, certo é que o casamento nunca foi consumado, e Branca, após exame físico, foi declarada em estado de virgindade. Intrigante seria o seu futuro, pois não mais voltou a casar e nem teve filhos.

Terminada a guerra civil da primeira metade do século XV que teve por protagonistas os infantes aragoneses, o caos instalou-se em Castela, mercê dos abusos, desordens e desmandos senhoriais. A férrea defesa dos interesses daqueles tinha provocado a queda do condestável do rei, Álvaro de Luna, mandado decapitar em 1453, decisão influenciada pela rainha Isabel, a Louca, neta de D. João I de Portugal.

Não estava em causa a sucessão de Juan II. O monarca casara por duas vezes. Do primeiro matrimónio só Henrique sobreviveu. Do segundo, havia uma menina com dois anos, e aguardava-se o resultado de nova maternidade da rainha para o final daquele ano de 1453.

 

Solteiro de novo, o príncipe pediu ao valido de confiança, João Pacheco, marquês de Vilhena, cuja família tinha origem portuguesa, que lhe buscasse alternativas matrimoniais. Posta a animosidade latente com Aragão e Navarra, foi-lhe sugerido virar os olhos para ocidente. Henrique decidiu encontrar-se com Afonso, monarca luso:

– Estava a pensar na tua irmã, Joana. Que achas?

Afonso V parecia não se querer descoser.

– Sabes que não tenho dinheiro para tão grande dote – desculpou-se, com alguma dose de verdade.

– Isso resolve-se – volveu Henrique

Contudo, o português hesitava, caminhando sem cessar dum lado para o outro, o que fez tornar o castelhano:

– Então, anuncia-se o casamento ou não?

– Sabes que minha irmã é mulher dada a prazeres próprios da idade, digamos assim. E, com ela, tem um séquito de aias do mesmo calibre.

– E daí? Não me achas capaz de a pôr na ordem? – insistia Henrique.

Afonso aparentava cada vez mais desconforto:

– É que ser rainha de Castela obriga a muito resguardo e discrição.

O castelhano apercebeu-se de que Afonso se esquivava:

– Desembucha, homem! Que te preocupa, que não entendo?

– Cheira-me que estás a querer arranjar noiva para contrariares os rumores acerca da tua impotência para teres um herdeiro.

– Presuntiva... admito, face ao casamento desfeito. Mas tu não acreditas nisso, pois não?

– O que eu acredito pouco interessa. O importante é teres a noção de que tal enlace vai estar debaixo de olho de muitos dos teus. Tens 30 anos e em breve serás rei. Queres mesmo avançar e correr tal risco? Se sim, explica-me como resolvemos a questão do dote.

 

(Continua)

 

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publicado às 20:29

Conto XXI - Desafio Vocabular

por Eduardo Gomes, em 12.12.19

Conforme anunciámos, retomamos sábado, 14 de Dezembro, a mecânica da repetição vocabular, por entendermos que é a melhor forma de memorizarmos palavras e expressões que nos vão enriquecer o conhecimento.

Recordo o universo a concurso, de acordo com os contos relativos a Outubro e Novembro:

Tíbio.....................................frouxo;

Ergástulo............................... prisão;

Virar a agulha......................... mudar de ideias;

Pobreza franciscana..................mediocridade;

Angras...................................enseadas;

Escudela.................................tigela.

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publicado às 11:52

Sessão de 09 de Novembro de 2019 - Conto XX

por Eduardo Gomes, em 13.11.19

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DIA DE MOUROS

Hoje foi dia de entendermos a aventura africana de Portugal no território actual de Marrocos. Mais de três séculos de história que acabaram no cerco de Mazagão, corria 1769.

Posto que no conto anterior observáramos a conquista de Ceuta, trouxemos desta feita a derrota de Tânger. Prenúncio das futuras perdas? Parêntesis que moldou novas vitórias? Veja cada qual conforme lhe aprouver.

Tal como Afonso V abandonou África para vir atrás do sonho da união ibérica, também nós lhe seguiremos os passos, para, no próximo conto, analisarmos o que se passou com Joana, a Beltraneja, versão bolorenta da nossa Beatriz de Portugal, ocorrida cerca de oitenta anos antes. É que, face ao desejo de poder dos homens, a história (mesmo a trágica) repete-se. E, tal como no futebol, os contendores até mudam de campo ao intervalo, que é como quem diz, mudam de princípios. Ópera grega.

 

ELES

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DESAFIO VOCABULAR

Eis as propostas de enriquecimento vocabular apresentadas:

(Carácter) tíbio....................... frouxo;

Ergástulo............................... prisão;

Virar a agulha......................... mudar de ideias.

 

ELAS

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Face às pontuações obtidas, os mais bem classificados são:

Maria Lorena............................160 Pontos

Lourenço Pinto..........................145

João Machado...........................145

João Fernandes.........................140

 

Pela fotogenia e tez, o Manuel foi eleito Al-Mansur Billah, isto é,

O VITORIOSO PELA GRAÇA DE DEUS 

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Notas:

A Maria Lorena, excepcionalmente, perdeu 10 pontos;

A partir do próximo mês, regressaremos ao figurino relacionado com a aprendizagem por repetição e estudo das expressões e vocábulos a concurso no bimestre Outubro/Novembro.  Durante a semana do conto de Dezembro, relembrarei todas as expressões a concurso.

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publicado às 17:46

Conto XX - "Al-Magrib"

por Eduardo Gomes, em 07.11.19

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A epopeia de Portugal no Norte de África começou em 1415 com a conquista de Ceuta. De legitimidade serviu a João, o da Boa Memória, cujos destemperos de consciência justificam que equacionemos o porquê de tal cognome. Muçulmanos e genoveses, gente habituada a mercadejar na cidade, preste desandaram. Qual rota do ouro e das especiarias: nada. O futuro revelava-se: uma cidade fantasma, sem muçulmanos, sem comércio e sem gente para trabalhar, a requerer permanente apoio do reino.

Contudo, já anteriormente por lá haviam bordoado ou espadeirado povos estabelecidos na Península, tais como os Lusitanos ou os Visigodos, e, diz a lenda, morrido o primeiro comandante da armada portuguesa, Fuas Roupinho, sem esquecer Giraldo, o Sem Pavor, que, por artes do diabo, tentou seduzir Afonso Henriques a atravessar o Estreito. Para trás deixámos propositadamente fenícios, gregos, cartagineses e romanos, posto jamais haverem sido inteiramente “nossos”, antes, e com mais propriedade, “viajantes do mundo”.

A Tânger fomos, as duas primeiras vezes sem proveito, algo que se assemelhou ao proverbial “ir por lã e volver tosquiado”. À terceira, a confirmar que “é de vez”, o fruto caiu-nos nas mãos de maduro. Sem engenho, diga-se. Oferecê-lo-íamos mais tarde, a título de dote ou prémio pela infidelidade e maus-tratos de Carlos II sobre a Catarina. Essa mesmo, a do “chá das cinco.”

O cavalheiresco, arcaico e idealista rei Africano afadigou-se em superar os seus émulos logo que Calisto III anunciou, corria 1455, a cruzada contra o Turco. Porém, os tempos haviam mudado, outros valores mais altos se levantavam entre os reinos cristãos. Para não deitar menino e água do banho fora, Afonso pegou nos preparos e bulas e virou a agulha da expedição para Alcácer-Ceguer. De lado, sorriu o tio, o impenetrável infante D. Henrique. É que se ia concretizando o sonho de montar em terra, a ocidente, um conjunto de apoios nevrálgicos para a aventura atlântica: o célebre plano das Índias, com ou sem o Preste e o seu mítico reino cristão situado algures no interior de África.

Chegara entretanto a vez de Anafé, a actual Casablanca. Se posteriormente arrasada ou simplesmente abandonada, é mistério que está por resolver. Porquê? Porque ficava muito a sul, tal como Arguim e o golfo da Guiné. Mas não era das regiões subsarianas que vinha o ouro? Era, mas Afonso V, qual Santiago, sentia-se mais vocacionado para “mata-mouros.”

Desaparecido o marinheiro de água doce, isto é, o mito a que chamamos o Navegador, epíteto sem sentido, fomos por Arzila. Canto de sereia do monarca que por ali se ficaria à mercê do apelo europeu nos braços infantis de Joana, a Beltraneja. D. João II seguiu o concelho de Pedro, o tio avô morto em Alfarrobeira pelos exércitos do pai, e sonhou mais alto. Da Mina, terra que não vem aqui ao caso, viria a vertigem da riqueza fácil. Outras histórias.

Do rei Venturoso se dirá que nasceu com “o dito cujo virado para a Lua”. Com ele se construiu a fortaleza Santa Cruz do Cabo de Guer, a actual Agadir, e se conquistou Safim, enquanto em Arzila soavam as trombetas a anunciar o cerco da mourama. Em 1506 edificámos o Castelo Real de Mogador, depois Essaouira, para, seis anos mais tarde, o abandonarmos. No biénio seguinte converteríamos Azamor e Mazagão em terras cristãs. Fachada para “Papa ver”, entenda-se.

Deixemos Manuel, o Felicíssimo, e passemos ao Piedoso D. João III. Débil de intelecto, teve o condão de dizer “basta! ” ao “sorvedouro do reino” em que Marrocos se transformara. Demos, pelo canto do olho, uma piscadela a al-Madi que, ao reverter a posse de Santa Cruz do Cabo Guer, nos obrigou a constatar uma realidade: os reinos de Fez, Marraquexe e Mequinhês unidos eram de mais para Nação tão pequena enfrentar por si só. Era chegado o tempo de reforçar as praças de Mazagão – hoje El Jadida – Tânger e Ceuta. Quanto às restantes possessões, tudo o vento do deserto levaria. Conquistas que nada acrescentaram ao reino, para além do garbo militar, da extorsão e da prossecução de interesses privados.

O louco Sebastião empurrou Portugal para o abismo de tanta ambição quixotesca. Nos campos de Alcácer-Quibir ficaram os corpos dos muitos mortos e 16 000 prisioneiros. Renegados se fizeram... está bem, está bem, elches, se assim o desejam. Sorte grande para quem arriscou na apostasia e na roda da fortuna, que, por aquele tempo, arredados andavam os agarenos do fanatismo religioso.

Moribunda ia já a Idade Moderna, quando a Lisboa chegaram novas de Mazagão. Os seguidores de Mafoma resolviam pôr ponto final num sonho que se transformara em pesadelo. Constou que recorriam a trincheiras com aproches e novas técnicas de minagem das fundações das fortalezas: – “Tudo para casa – ordenou o Marquês. – Acabou-se a África minha.” Passou a ser “deles”, dos muçulmanos... ou talvez não, pois Espanha tem dois pesos e duas medidas, consoante se discute Ceuta, Gibraltar ou mesmo Olivença.

TÂNGER: PARÊNTESIS OU PRENÚNCIO?

Em Ceuta, apoiado nas ameias da fortaleza, D. Pedro de Meneses olhava a noroeste, como se esperasse a chegada de alguém ou o vazio o incomodasse. Era, em 1436, um homem rico, nobilitado por D. João I e aclamado em Lisboa como herói, mais pela governação que pelos feitos de armas no território africano. Conseguira o grande objectivo a que dedicara a vida: fazer renascer o poder e influência dos Meneses, os quais haviam sido completamente derrotados em Aljubarrota.

Ultimamente, o capitão vinha dando sinais de cansaço, nada de mais para um ancião com sessenta e três anos. Duarte de Meneses, o único filho varão, ainda que de barregã, andava preocupado com tamanha abulia. Aproximou-se de mansinho:

– Que se passa, meu pai, que vos vejo assim tão angustiado?

– Do reino chegaram-me novas de que se prepara farta armada para vir por Tânger.

Consciente da situação local, Duarte não se conteve:

– Mas é praça forte, protegida pelas montanhas e, como se não chegasse, capitaneada por Zalá Benzalá, que desde há 22 anos anda a jurar vingança pela perda de Ceuta. É verdade que a cidade tem um bom porto de mar ...

– Faca de dois gumes: o que serve para atacar, também serve para defender. Não entendo como o rei se deixou envolver em tal aventura. No tempo do pai não se faziam assim as coisas

– Quiçá andará mal aconselhado – insinuou o jovem.

A retoma da ideia da expedição a Marrocos não era nova. Já em 1432, ainda em tempo do pai, Henrique propusera tal aventura. Todavia, o primogénito real, de há muito responsável pela Fazenda, opôs-se por razões ligadas ao estado do Erário Régio. Adiado ficaria o projecto. Três anos mais tarde, Fernando, o mais novo dos filhos de D. João e Filipa de Lencastre, dirigiu forte lamento junto do já então monarca, o irmão Duarte:

– Majestade, custa-me viver à custa de vossa Fazenda. Eu sou mancebo que nada fez na vida digno dos pais e irmãos que tenho. Peço-vos que me concedeis bênção e licença para me ir fora destes reinos.

– Que dizes, Fernando? E para onde irias?

– Onde Deus e a minha ventura me guiarem. Acaso os estados papais; quiçá França; porventura as terras do imperador da Alemanha, regiões com grande largueza de terras

El-rei não podia aceitar tamanho pedido. Logo volveu:

– Ambição exagerada tens. É preferível o pouco dentro do reino, do que o muito fora dele. Ademais és mestre de Avis, donde te vem riqueza que te dignifica. Repara em teu irmão João, a quem ofereci o mestrado de Santiago, bem menos valioso do que o teu, e com ele se contenta.

 

(Continua)

 

Os pais / encarregados de educação das crianças envolvidas neste projecto, poderão solicitar a versão integral do mesmo através do e-mail: asvoltasdahistoria@gmail.com.

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publicado às 23:08

Sessão de 12 de Outubro de 2019 - Conto XIX

por Eduardo Gomes, em 07.11.19

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Voltámos com o Outono. Assim estava previsto.

Dedicámos este primeiro conto do ano IV à conquista de Ceuta. Todavia, não nos limitámos à epopeia que caracteriza tal vitória. Fomos mais longe, abordámos o "dia seguinte" para entendermos que a um objectivo deve corresponder um fim. Algo que os políticos de hoje -- seis séculos depois --  ainda não entenderam. E, pese a manutenção da praça em mãos cristãs em pleno século XXI, a cidade revelou-se, no dizer do infante Pedro, "um sorvedouro do reino". Do plano tão profundamente elaborado, pouco mais restou para além do garbo militar, da prática do saque, da extorsão e da prossecução de interesses privados. A começar pelo designado (que remédio, não é, João I?) capitão, Pedro de Meneses.

Perderíamos a cidade, em 1640, quando o governador, D. Francisco de Almeida, se meteu em "democracias anacrónicas". Ingenuidade ou fatalismo? Maktub!

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DESAFIO VOCABULAR

Ausente o João Fernandes, um dos líderes ao fecharmos Junho, as propostas de enriquecimento vocabular foram:

Pobreza franciscana, expressão cujo significado é mediocridade;

Angras, que se trocam por enseadas;

Escudela, versão para uma tigela de tamanho reduzido. 

 

Face às pontuações obtidas, os mais bem classificados são:

Maria Lorena............................130 Pontos

Lourenço Pinto..........................120

João Machado...........................105

João Fernandes.........................100

Hugo Âmbar...............................70

 

Em linha com a filosofia seguida no conto anterior, focaremos de novo a concentração em sala. A partir do próximo mês, regressaremos ao figurino relacionado com a aprendizagem por repetição e estudo das expressões e vocábulos a concurso no bimestre Outubro/Novembro.      

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publicado às 23:07

Conto XIX - "Sonho e Pesadelo"

por Eduardo Gomes, em 10.10.19

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SONHO E PESADELO

Corria o ano de 1411, quando o vedor da Fazenda Real, João Afonso de Alenquer, se cruzou propositadamente com suas altas majestades os três infantes filhos mais velhos de D. João I. Tomando o herdeiro gentilmente pelo braço, assim lhe falou:

– Que saudades tenho doutros tempos... Ontem mesmo não passáveis de crianças...hoje sois homens feitos. Nas veias corre-vos sangue Avis e Lencastre, exemplo para todos os vossos súbditos.

Duarte suspeitou do elogio despropositado e logo replicou:

– Deixa-te de volteios, que é coisa é mais própria para os salões dançantes. Que nos queres dizer, João Afonso?

Contudo o vedor não parecia disposto a abrir o jogo. Ademais sabia bem ao que ia:

– Nada tenho em mente, Senhor, que não o bem da nossa terra e da real família...

– Desembucha, homem, que já me estás a pôr nervoso.

– É que chegou-me aos ouvidos a intenção de vosso pai em vos armar cavaleiros...

João Afonso acabava de tocar na ferida que sabia dolorosa para os infantes.

– Sim, é verdade, já no-lo prometeu.

De lado, Henrique não se conteve:

– Quer promover uma festa cavaleiresca para tal ocasião

Malicioso, o vedor logo aproveitou a deixa:

– Não me recordo de ver tal desprestígio nestes reinos. A nobreza de serdes armados cavaleiros obtém-se em combate com a mourama, não nos salões reais.

Até Pedro, o mais comedido dos infantes, achou por bem intervir na conversa, fazendo-o com a inteligência que já na ocasião demonstrava:

– Que propões que façamos, João? Pergunto-to, porque é óbvio que trazes pensamento feito.

– Unam-se e intercedam junto do rei vosso pai. Pedi-lhe que vos confie a direcção do projecto de conquista do litoral marroquino.

E, passada a surpresa inicial:

– Imaginai: Tânger... Arzila e, porventura mais tarde, Salé, Alcácer, Anafé, Azamor, Santa Cruz do Cabo de Goé...

A Henrique, sempre impetuoso e impulsivo, parecia-lhe escutar música celestial. Porém, mais comedido se mostrou Duarte:

– Conseguíssemos de nosso pai permissão para nos irmos primeiro a Ceuta, que mais à mão nos fica... Quanto ao resto, logo se veria.

O caminho estava trilhado. Por já o haver discutido com o rei, bem sabia João Afonso da oposição daquele a tal projecto, ou assim o cria. O caso era que desde Aljubarrota, vinte e cinco anos atrás, estavam as armas portuguesas a enferrujar. A guerra era o meio fácil para a nobreza fazer fortuna, fosse pelo saque ou pela mercê real. O descontentamento atingia particularmente os filhos segundos daqueles, gente afastada legalmente da herança paternal. Muitos haviam mesmo partido, sobretudo para Inglaterra, para se juntarem aos exércitos do aliado que combatiam os franceses.

– Importante é desviá-los das acções depredadoras sobre as terras fronteiriças de Castela. Ainda há bem pouco alcançámos uma paz sustentável, e não quero, nem por sombras, envolver-me noutra guerra com tal vizinho – assim explicara o monarca ao vedor o pensamento que alinhavara.

– Mas Alteza, a expansão para África é também uma forma de guerra. Eu que o diga, que bem o sei pelos custos que enfrentamos com a reconstrução do reino, e pelos quais tanto temos desvalorizado a moeda e tornado a vida cruel ao povo. Imaginai, por um minuto, que os infantes dão em cismar em tal aventura?

– Cá estarei para os contrariar.

– É mesmo vossa opinião que seria descabido tal plano?

– Não é assunto em que não tenha já pensado.

Na verdade, D. João não estava assim tão seguro de que, ponderados prós e contras, continuaria tão irredutível. A questão era que, naquele momento, convinha-lhe que o vedor fosse tão assertivo quanto possível na estratégia de manipulação da opinião dos infantes.

Bem preste os filhos se dirigiram ao pai, Henrique à cabeça, excitado com a ideia da aventura africana. D. João não os quis desencorajar, fazia mesmo parte do plano animar os infantes a continuarem no seu propósito. E, por tal, colocou-lhes uma dúvida acima de tudo o mais:

– Necessito saber se a aventura africana é serviço de Deus, pois sobre tal premissa devemos fazer nosso alicerce.

Rapidamente os jovens buscaram o apoio dos mais importantes clérigos do reino, todos unânimes em considerarem a importância da expansão da Fé... e, se possível, a corrida às bulas e aos rendimentos eclesiásticos, objectivos a tresandarem a poder temporal.

Da busca por tão transcendentes testemunhos, viu-se o rei compelido à sua aceitação:

– Concordo que isto seja inteiramente serviço de Deus.

Porém novas questões se colocavam:

– Agora, é de ver se sou poderoso para o fazer Achei muitas e grandes dúvidas, das quais principalmente direi cinco:

– primeiramente, considero que para semelhante feito se requerem mui grandes despesas, dinheiro que eu não tenho;

– secundariamente, é necessário uma mui grande frota de navios;

– a terceira cousa é a abastança da gente que não tenho, e eu não tenho a de fora nem a esperança como a haja, principalmente pelo falecimento do dinheiro;

– a quarta dúvida que tenho é considerar que o filhamento desta cidade me pode fazer maior dano do que proveito;

– a quinta cousa me parece que é, sendo assim que cobremos esta cidade a nosso poder, que nome ou honra nos vem se ao adiante não pudermos manter ou defender?

Por aquela não esperavam os infantes. Henrique logo se incumbiu de ir analisar e ponderar nas soluções a tantas dúvidas.

 

(Continua)

 

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publicado às 18:23


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